14 abril 2008

Inquietudes de Um Menino

Olhou torto, mas não esboçou palavra.
No canto da sala, ficou a observar a movimentação da criançada. Um menino de mais ou menos uns quatro anos chamou bastante a atenção. Sim, decerto era uma criança. Mas tinha um pesar no semblante, que fazia com que a testa se franzisse, e, que, cada dobra acima dos olhos, mais parecesse uma ruga de preocupação. Um sinal claro de que as ações do tempo deterioraram o aspecto jovial de sua existência. Não pegava Lego ou carrinho de bate-bate. Isolava-se do batalhão mirim, e se anarquizara por opção.
Henrique, ao sentir essa protuberância do tempo, tentou pegar o menino no colo, ou ao menos se socializar com o garoto. Mas não obteve êxito. O garoto deu de ombros às investidas de Henrique, e como medida preventiva, tratou de recuar três passos. Em seguida, fechou a cara.
Agora dava medo. Fazia questão de passar essa mensagem.
Ao perceber o clima hostil, Henrique tentou um diálogo amistoso:
- Ei, pode ficar calmo. – com os braços abertos em busca de uma receptividade, ou pelo menos, para passar ao guri, a imagem de diplomata – Eu quero ser seu amigo, rapaz! Como você chama?
O menino ficou em silêncio. As outras crianças por um instante pararam de brincar e tomaram ciência do que acontecia na sala principal do orfanato. Henrique pôs em prática sua percepção aguçada, que anos atrás fora elogiada, por grande parte das pessoas que faziam parte de seu contato social. Declinante contato social, diga-se aqui.
Tentou se afastar e buscar paz, mas não alcançou nem uma, nem outra. Como seguira conselhos de sua prima Danúbia, dedicou-se à hábitos mais ligados a civilização oriental. Tentou bravamente equalizar os seus ombros. Tentou a serenidade da alma, tanto por religiões, quanto em pensamentos e filosofias. Fracassou em tudo. Juntou-se em frustração, acelerou o carro depois de um enfadonho dia de trabalho e parou num Burger King. Mas estava sem fome, pediu só uma Coca-Cola.
Alice estava no pátio.
Já havia falado do menino com cara de homem.
Do homem que se habitou no corpo de um menino.
Para ser sincero, Alice já havia mencionado o semblante daquele menino, por incontáveis vezes, com Henrique. Falava de todos os meninos. Do Celcinho, que tinha uma calça amarela do Bob Esponja, e que toda vez que via Alice parando o carro, ou dobrando a esquina, já corria para o portão em busca de um caloroso abraço, coisa que só poderia ser feita pelas tias da instituição; Tinha a Ferruginha, que ficava pior que pimentão, quando alguém fazia alguma troça, ou quando a colocavam em situação de exposição pública, deixando seu rosto a arder, e suas pintinhas ainda mais rubras; A pequena Dani, que acabara de chegar na Casa das Tias, mas que não tinha vergonha alguma de se aprumar, dada e faceira que era; O Miltinho, que parecia mesmo o Milton Nascimento, com aquele cabelinho todo arrumado pelas Tias, e com a vertente afro completamente exposta; Tinha tanta criança agradável. Tanta criança cheia de luz, e tinha também o misterioso, o incompreendido, Lucas.
Ela detestava trata-lo assim, mas era inevitável;
Sua presença assustava os adultos. Ou talvez, sua ausência fazia com que os adultos buscassem sua presença. Ele já fora estudado até por um estudante de sociologia, que analisou as estruturas sociais de uma sociedade mirim. Foi engraçado, porque as bases hierárquicas, os perfis de liderança e os excluídos, foram detectados desde o primeiro estudo. Foi preocupante demais a conclusão do estudante. Com base em seus acompanhamentos, grosso modo, ficou decretou-se a definição sim de uma pequena sociedade, que já era provida de desigualdade. E falamos de um grupo de crianças de três a sete anos.
Mas, Zeca, o estudante, não conseguiu fundamentar o comportamento de Lucas. Teve que buscar apoio de alguns professores e amigos psicólogos para esboçar uma teoria breve, da situação do pequeno.
“Uma figura que não apresenta carisma, não tem perfil de liderança, mas que também não compartilha a plebe dos excluídos. Os que mais apanham, mais choram, mais têm brinquedos quebrados; Os outros, o observam com um certo receio. E ele, nem olha para a cara deles. Aliás, não olha nos olhos de nenhuma pessoa. De quando em quando, dá a impressão de que soltará um breve sorriso. Mas deixa claro que não será um homem que colocará sempre seus dentes à mostra. Contido nas atitudes, respeitado nas ações, exerce o papel de guru espiritual, de pajé, de monge. Mas o que menos se vê em Lucas, é espírito, alma, vida. Lucas é o retrato da existência humana sem paixão. Uma racionalidade ordinária, cansada. Não há em Lucas ânsia pela descoberta. Mas é inegável, que qualquer um que dá de olhos com o guri, não tem mais o controle das emoções. Como um pequeno bruxo, esta criança despeja seu feitiço – para o bem e para o mal; Uma pena, talvez seja um gênio incompreendido, uma figura antes de seu tempo, mas o que fazer com uma criança de apenas quatro anos que já escreve perfeitamente? Ela já sabe que incomoda, e, acima de tudo, ela já se sente incomodada com as inquietudes da mente humana”.

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