15 março 2006

Medo (Segundo Diego Avelar)

O medo era meu amigo.

Já não sabia há quantos dias eu estava sem comer.
Mamãe sempre dizia que era para eu recusar tudo o que estranhos me oferecessem. Mas estes caras eram mais do que estranhos. Mesmo aos quatro anos eu já sentia, que aquelas migalhas de pão emboloradas e aquele leite com cheiro de azedo iriam acabar comigo.
Eu precisava da mamãe ao meu lado. Sentia falta do seu cheiro, do seu abraço, da sua mão que corria por todo o meu cabelo embaraçado descendo até o pescoço e voltando levemente.
Atordoado, comecei a lembrar do meu penúltimo dia de felicidade, quando papai trouxe flores para mamãe e me deu um abraço apertado. Parecia mais uma despedida... Era uma despedida.
Eles tiveram uma noite maravilhosa: prometeram a si mesmo que no último dia de casados relembrariam os momentos em que as desavenças não eram constantes e que havia harmonia naquela casa.
Não sei se sou avançado para a minha idade, mas todos estes pequenos detalhes não esqueci nunca. Parece até que tenho um Memorycard de PlayStation 2 em meu cérebro.
Papai dizia que no tempo dele, as crianças corriam pelas ruas, brincavam de esconde-esconde, pega-pega, pião, jogavam bolinha de gude, taco, e que mesmo assim eram felizes.
Será que papai estava certo o tempo todo?
Talvez, porque em meu último dia de felicidade uma tal de Sofía Avelar, mais conhecida como minha mãe, me levou para passear, coisa que há muito tempo não fazia.
Depois da tradicional visita de final de semana à casa do papai, paramos na sorveteria da esquina e pedi o maior sorvete que minha gula pudesse agüentar.
Estava um calorão, e conforme eu andava, respingava sorvete na camiseta do São Paulo, presente que ganhei domingo passado, quando eu e papai, que é tricolor doente, fomos ao Morumbi.
Mamãe me levou ao parque e logo que chegamos lá um menino folgado me empurrou, mas depois veio outro que me chamou para brincar. Foi incrível! Corremos, nos escondemos, subíamos nos brinquedos, descíamos com tudo lá do topo do escorregador. Eu olhava pra mamãe e ela estava muito feliz, debaixo de uma arvore, vovô diria que era uma figueira.
Quando começou a escurecer, cansei de brincar. Fiquei com sono e mamãe me pegou no colo e me colocou no banco de trás do carro.
Em sua mão, estava uma caixa de lego, que em momento algum eu toquei enquanto estava no parque, e imagino que ela percebeu que aquele brinquedo não tinha mais utilidade, pois finalmente encontrou uma forma de me deixar alegre. Eu não precisava mais construir castelos de felicidade.
Ao entrar no carro, tive uma sensação horrível: meu corpo tremeu, minha boca secou, senti um frio na espinha, enfim dei de cara com o medo!
A felicidade foi embora pela janela do passageiro e nem deu pra ver pelo retrovisor para onde ela se foi. Só ouvi uma voz desesperada, enquanto mamãe entrava no carro e endireitava seu corpo no banco da frente.

– Quietinha dona, ou você já era...

Desesperado, vi que o moço estava acompanhado com mais um outro, e em sua mão uma faca passava rente ao pescoço da mamãe.
Em estado de choque, não tinha como mamãe desobedecer àqueles caras, e os dois entraram no carro, espalhando o lego por todo o banco de trás.
Um deles me forçou a cheirar um pano. Resisti e chorei, mas de repente meus olhos começaram a se fechar e ao meu lado, eu vi a última imagem de mamãe: o vento secava suas lágrimas e seus olhos não fugiam dos meus. Sua boca delicada e gostosa de beijar esboçava alguma coisa, mas meus olhos, meus olhos teimavam em se fechar. Naquele instante me concentrei como nunca, mais até do que quando a tia da escolinha pede pra todo mundo prestar atenção nela. Antes que eu dormisse, tinha que ouvir o que ela dizia. E eu ouvi!

- Diego, Diego, não importa o que acontecer. Não importa o que te façam. Quando você sentir medo e ver tudo escuro lembre-se dos momentos em que foi feliz, meu filho...

Dias se passaram e eu resisti. Não sei de onde tirava aquela força toda.
Sem comer, mal conseguia dormir, e não tinha nem idéia de onde estava a mamãe.
Os dois seqüestradores quase não falavam comigo e eu mal ouvia conversas entre eles.
Um dia o Cacá, que deveria ser o cérebro da dupla, saiu e então eu tentei descobrir algumas coisas com o outro, que era meio doidão, o Neguinho. Comecei perguntando pela mamãe e ele nada me dizia. Insisti, insisti e ele me deu um soco.
Nunca havia apanhado na vida, e aquela dor foi demais pra mim. Comecei a chorar. Minhas lágrimas eram uma mistura de dor, fome, desespero, saudade, angústia e, principalmente, medo.
Eu estava jogado num quarto escuro, perto de um buraco onde passava uma água fedida, acho que era lodo. Fechei meu corpo em silêncio.
Mesmo assim, o Neguinho estava transtornado e me bateu de novo. Me levantou pela camisa, rasgando o manto sagrado do meu pai, e me jogou longe.
Viu uma pá de pedreiro e veio com ela em minha direção. Bateu em minha cabeça e tirou da cintura uma faca mais enferrujada do que os trilhos daquele trem antigo que um dia pegamos quando visitamos o tio Adolfo, que mora na zona leste.
Acho que lembrei de todas esses detalhes, porque dizem que quando estamos perto do fim, um verdadeiro filme passa em nossa mente.
Neguinho se aproximava, e eu não sentia mais medo. O medo tornou-se meu amigo e aprendi a conviver com ele. Me concentrei de uma forma ainda mais intensa do que a daquele dia no carro.
Aos poucos lembrava do último beijo dos meus pais, daquela noite maravilhosa, da forma como eles me olharam.
Me lembrei da euforia do papai ao me abraçar na hora que saiu gol no Morumbi, e de como gritei com emoção e satisfação por estar ao lado da pessoa que eu mas sinto saudade na vida. Quando chegava o final de semana, ele me abraçava e jogava pro alto, e eu via naqueles olhos, o homem que eu queria ser.
Me lembrei de como era gostoso empurrar a tia e sair correndo da escolinha direto para o carro da mamãe, que me levava para almoçar, sempre um prato especial, feito com muito carinho. Em casa, fingíamos que papai tinha saído, que estava em uma viagem de negócios e que só o veríamos no final de semana.

Neguinho estava na minha frente.

Fechei meus olhos e tentei lembrar as palavras que a linda Sofía me disse naquele carro.

Sintia algo entrando em meu corpo. Era a faca do Neguinho.

Pai, não deixaram que me tornasse o homem que o senhor é, mas pode ter certeza que serei sempre o seu Diego, o seu Anjinho.

Mãe, estou pronto... não importa o que acontecer. Não importa o que me façam. Sinto medo e vejo tudo escuro, mas eternamente lembrarei dos momentos em que fui feliz, afinal, fui seu filho.

2 comentários:

Rassudocando a djísene disse...

Ai...to gostando de ver a rapaziada escrevendo nos Blogs, dá para notar como muitos de nós temos talento para essas coisas!!
Robas, João, Lipe e vc...estão de parabéns pelos textos!!

Valeu Duds...


Parabéns pelo ótimo texto!

Robson Assis disse...

Essa foi emocionante demais. De chorar mesmo. Vista pelo moleque a história chega até a parecer bonita.. eAHEAHEhh

Abraço