20 fevereiro 2008

VI

Chego em casa com uma larica do cão. A Nádia está no canto esquerdo da cama, em profundo silêncio. To ligado que ela tá acordada e que sabe onde eu tava.Sabe sim o que e fui fazer. Sente o que meu corpo busca nos momentos de extremo prazer ou de extrema dor. E, entre esses ápices, umzinho pra não perder o costume. Pronto. Fez-se um viciado. Eu poderia resumir minha vida em uma frase: “Um ninguém que não busca redenção.Um alguém que se rendeu à maconha”.E é essa porra que me incomoda. Eu queria ser como os manos do escadão da pracinha. Os caras ficam de boa lá na deles, sem dar guela mesmo, que nem naquela música. A comunidade sempre passa em frente dos maluco, mas ninguém comenta nada. Uma hora ou outra,algum Zé Povinho faz algum tipo de denuncia, e os caras dão um sumiço. Mas esses caguetas só fazem isso, porque morrem de inveja. Não é nada contra o consumo de drogas. O que deixa o povo repleto de inveja é o fato de os manos ficarem lá aproveitando um dia de sol, enquanto a maioria da população dali ta trampando pra caralho no centro, ou em qualquer lugar bonado. Isso fere o ego do trabalhador honesto. É uma frustração sem tamanho. Pra quem é mente fechada, isso é pior do que assalto. Pior que o próprio tráfico. Pior que o próprio crime.
Deito sem fazer muito barulho. Pego o lençol e tento esticar até meu queixo. Tá foda. Acho que é melhor tomar uma ducha. To sem sono mesmo. E nem tem nada a ver com o consumo de maconha. Levanto aos passos calados. Entro no chuveiro que de ducha num tem nada. Olho pro meu corpo e começo a reparar a porra de banha que ta crescendo na minha barriga. Caralho, isso aqui já ta parecendo uma pochete. Eu to só com 25 anos. To começando a ficar com corpo de tiozão. Amanhã mesmo vou voltar a fazer abdominais e a puxar os ferros que tão lá atrás da área. Acho que deve ter uma barra enferrujada. Aquela da Academia que fechou mês passado. Se pá os caras mudaram prum lugar melhor; dane-se, peguei o bagulho lá na humilde, o dono disse que podia catar então já era. Faço a barba e ainda lembro dos dias que num tinha um só pêlo na cara. Do primeiro beijo com aquela mina lá do Magalhães, acho que era Jaqueline o nome dela. É, é isso mesmo. Jack. Mina da hora demais. Comecei bem. Mas também, ela pegou a rua inteira. Se num me engano, fui o terceiro. Mas aí, ela confessou pro primo dela, que o melhor beijo foi o meu. Essa parada me deixou feliz, mas nem tive coragem de dizer que era a minha primeira vez. Achava que por ter onze anos já estava velho demais. Também, os caras viviam contando que comeram a Alessandra em três. Nem pensava em gozar ainda. Mas se eu falasse isso, se eu entregasse isso pra eles, talvez os caras estariam me zoando até hoje. Nem é bom dá essas brechas assim. É tipo se os caras descobrem um apelido. Num adianta você negar, ficar puto, sair na mão. Nada disso. Uma vez que percebem o teu ponto fraco, te avacalham até o fim.
A brisa já tá passando. Vou à geladeira e faço um segundo tempo.
Dou mais um tempo jogado no sofá. Uma última olhadela na janela ao longe. Crescimento urbano desordenado; ruas mal iluminadas; bares; bêbados nos bares; becos; viciados nos becos; abandono; eu e a quebrada no abandono.
Penso no Luna. Penso no plano.
Mais nada vem na mente.
Acho que vou falhar amanhã.
Melhor deitar.
Melhor deixar que os sonhos possam reorganizar minhas idéias, enquanto tento descansar e esquecer um pouco toda a merda que aconteceu com o irmão Lunático.
- Aí Robas, que sonho é esse?
- Sei não cara, consegui dormir só agora, nem entendo esses lances de sonho não!
- Pode crer. Que porra é essa de cidadania e revolução?
- Então, tô amadurecendo uma idéia, esses dias aí. Sabe, pra falar a verdade eu sempre tive um lance meio pilhado assim comigo, manja? Mas depois que vi todo mundo chorando lá por você, comecei a ficar irado. To bolando um lance aí com uns malucos aqui do Capão e, se tudo der certo, à partir de amanhã a gente vai montar uma “firma” diferente. Os filhos da puta lá de cima vão tremer, cê tá ligado?
- Só. To ligado sim. Mas aí como você vai fazer essa parada?
- Então, amanhã a gente vai marcar uma ponta no shoppinho. Daí vou lançar tudo. Depois, vamos colocar a porra do plano na prática. Ficar parado nem cola mais.
- To vendo que você ta animado, truta.
- To sim. Eita porra!? Que merda é essa de pipa andando de carrinho de rolemã?
- Ah, eu to voltando pra infância ta ligado? Aqui ó ? Tá vendo meu Qchute?
Usava ele quando passava o programa do Bozo.
- Porra cê desenterrou essas porra, Lunático. Caralho, olha o Bozo colando na rua da feira.
- Ah, mas essa parada é da hora. Vamo cola com ele. Chega pra lá palhaço!
- Alô Criançada!
- Que horas são?
- 5 e 60, é claro.
- Só...
- Aí, pega um suco desses aí, Robas.
- Esse é firmeza. Mas nem vou pegar o de 38. Vô ficar com esse aqui do trem.
- Só. Aí, aproveita a viagem, amigo. Vou pro outro lado. Acho que subo a serra. Cê cuida da Jana?
- Claro, velho. Cê ficou bicado comigo?
- Não rapá, tu fez uma escolha. A Nádia é uma mina bacana, vai de boa. A Jana vai se encontrar.
- Também acho. Ela merece um cara foda.
- Aí, o palhaço já pegou o trem.
- Vai lá, Luna. Aproveita pra descansar.
- Lógico que vou descansar, tio. Mas antes, vou fazer uma hora extra. To por aqui enquanto vocês estiverem nos trilhos da revolução.

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